Desiguais na
vida e na morte
A morte de
Ayrton Senna comoveu o país. O desalento foi geral. Independentemente do “big
carnival” da mídia, todos perguntavam o que Senna significava para milhões de
brasileiros. Por que a perda parecia tão grande? O que ia embora com ele?
Dias depois, uma mulher morreu atropelada na
avenida das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ficou estendida na
estrada por duas horas. Como um “vira-lata”, disse um jornalista horrorizado
com a cena! Nesse meio tempo, os carros passaram por cima do corpo, esmagando-o
de tal modo que a identificação só foi possível pelas impressões digitais.
Chamava-se Rosilene de Almeida, tinha 38 anos, estava grávida e era empregada
doméstica.
Efeito
paroxístico do apartheid simbólico que fabricamos, pode-se dizer. De um lado, o
sucesso, o dinheiro, a excelência profissional, enfim tudo o que a maioria acha
que deu certo e deveria ser a cara do Brasil: do outro a desqualificação, o
anonimato, a pobreza e a promessa, na barriga, de mais uma vida severina.
O brasileiro
quer ser visto como sócio do primeiro clube e não do segundo. Senna era um
sonho nacional, a imagem mesma da chamada classe social “vencedora”; Rosilene
era “o que só se é quando nada mais se pode ser”, e que, portanto, pode deixar
de existir sem falta. Luto e tristeza por um; desprezo e indiferença por outro.
Duas vidas brasileiras sem denominador comum, exceto a desigualdade que as
separava, na vida como na morte.
[...] O
problema --- fique bem claro! --- não é discutir o incontestável mérito de
Senna. O problema é saber como as pessoas que provavelmente choraram sua morte
foram capazes, pouco depois, de esmagar uma mulher como quem pisa numa barata!
Cada dia mais, somos levados a crer que “humano como nós” são apenas aqueles
com nossos hábitos de consumo, nossos estilos paroquiais de vida, nossas
características físicas, nossas preferências sexuais etc.
[...] Já não
nos identificamos como seres morais, cujos semelhantes são todos aqueles
capazes de falarem e distinguirem o bem do mal. Humanos são os que ostentam os
mesmos objetos que possuímos; que aspiram ou alcançam o sucesso mundano que nos
deixa em transe ou que exibem as marcas corpóreas que temos ou queremos ter. Os
outros nada são.
A honra que
coube a Senna era justa e legitimamente devida. Mas torna-lo um “ideal” de
“identidade nacional”, como muitos pretenderam, é fazer de sua memória
caricatura de nossa incompetência cívica e humana. No nível da cidadania, a
excelência é outra. É saber como impedir que outras “Rosilenes” sejam trituradas
como lixo no asfalto, pelos possíveis amantes de corridas de automóveis.
É esse o “x”
do problema: mostrar que qualquer vida, pobre ou rica, famosa ou anônima, deve
ser respeitada como um bem em si. O mais é exploração comercial inescrupulosa
da vida e da morte dos melhores e mais honrados.
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