sábado, 4 de abril de 2015


Desiguais na vida e na morte

A morte de Ayrton Senna comoveu o país. O desalento foi geral. Independentemente do “big carnival” da mídia, todos perguntavam o que Senna significava para milhões de brasileiros. Por que a perda parecia tão grande? O que ia embora com ele?

Dias depois, uma mulher morreu atropelada na avenida das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ficou estendida na estrada por duas horas. Como um “vira-lata”, disse um jornalista horrorizado com a cena! Nesse meio tempo, os carros passaram por cima do corpo, esmagando-o de tal modo que a identificação só foi possível pelas impressões digitais. Chamava-se Rosilene de Almeida, tinha 38 anos, estava grávida e era empregada doméstica.

Efeito paroxístico do apartheid simbólico que fabricamos, pode-se dizer. De um lado, o sucesso, o dinheiro, a excelência profissional, enfim tudo o que a maioria acha que deu certo e deveria ser a cara do Brasil: do outro a desqualificação, o anonimato, a pobreza e a promessa, na barriga, de mais uma vida severina.

O brasileiro quer ser visto como sócio do primeiro clube e não do segundo. Senna era um sonho nacional, a imagem mesma da chamada classe social “vencedora”; Rosilene era “o que só se é quando nada mais se pode ser”, e que, portanto, pode deixar de existir sem falta. Luto e tristeza por um; desprezo e indiferença por outro. Duas vidas brasileiras sem denominador comum, exceto a desigualdade que as separava, na vida como na morte.

[...] O problema --- fique bem claro! --- não é discutir o incontestável mérito de Senna. O problema é saber como as pessoas que provavelmente choraram sua morte foram capazes, pouco depois, de esmagar uma mulher como quem pisa numa barata! Cada dia mais, somos levados a crer que “humano como nós” são apenas aqueles com nossos hábitos de consumo, nossos estilos paroquiais de vida, nossas características físicas, nossas preferências sexuais etc.

[...] Já não nos identificamos como seres morais, cujos semelhantes são todos aqueles capazes de falarem e distinguirem o bem do mal. Humanos são os que ostentam os mesmos objetos que possuímos; que aspiram ou alcançam o sucesso mundano que nos deixa em transe ou que exibem as marcas corpóreas que temos ou queremos ter. Os outros nada são.

A honra que coube a Senna era justa e legitimamente devida. Mas torna-lo um “ideal” de “identidade nacional”, como muitos pretenderam, é fazer de sua memória caricatura de nossa incompetência cívica e humana. No nível da cidadania, a excelência é outra. É saber como impedir que outras “Rosilenes” sejam trituradas como lixo no asfalto, pelos possíveis amantes de corridas de automóveis.

É esse o “x” do problema: mostrar que qualquer vida, pobre ou rica, famosa ou anônima, deve ser respeitada como um bem em si. O mais é exploração comercial inescrupulosa da vida e da morte dos melhores e mais honrados.

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